Informativo 649 - STJ - É possível a inclusão de dupla paternidade em assento de nascimento de criança concebida mediante as técnicas de reprodução assistida
terça-feira, 20 de agosto de 2019, 16h08
PATERNIDADE
É possível a inclusão de dupla paternidade em assento de nascimento de criança concebida mediante as técnicas de reprodução assistida heteróloga e com gestação por substituição, não configurando violação ao instituto da adoção unilateral
Situação hipotética: Daniel e João, que convivem em união estável homoafetiva, almejaram ter um filho. Procuraram uma clínica de fertilização na companhia de Martha, irmã de João, para um programa de inseminação artificial. Daniel e Martha se submeteram ao ciclo de reprodução assistida, culminando na concepção de um embrião. Martha foi a “barriga de aluguel”. Este embrião deu origem, então, a Letícia. Martha, mãe de substituição, por meio de escritura pública, renunciou ao seu poder familiar em relação ao nascituro. Daí, Daniel e João ajuizaram a ação postulando que ambos fossem declarados pais da criança recém-nascida. Eles pediram que fossem reconhecidos como pai biológico (Daniel) e pai socioafetivo (João), mantendo em branco os campos relativos aos dados da genitora, pois a concepção ocorreu mediante inseminação artificial heteróloga e a gestação por substituição.
O pedido foi acolhido pelo STJ.
É possível a inclusão de dupla paternidade em assento de nascimento de criança concebida mediante as técnicas de reprodução assistida heteróloga e com gestação por substituição. A reprodução assistida e a paternidade socioafetiva constituem nova base fática para incidência do preceito “ou outra origem” do art. 1.593 do Código Civil. Os conceitos legais de parentesco e filiação exigem uma nova interpretação, atualizada à nova dinâmica social, para atendimento do princípio fundamental de preservação do melhor interesse da criança. Vale ressaltar que não se trata de adoção, pois não se pretende o desligamento do vínculo com o pai biológico, que reconheceu a paternidade no registro civil de nascimento da criança. STJ. 3ª Turma. REsp 1.608.005-SC, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 14/05/2019 (Info 649).
Imagine a seguinte situação hipotética:
Daniel e João convivem em união estável homoafetiva e resolveram ter um filho. Procuraram, então, uma clínica de fertilização na companhia de Martha, irmã de João, para um programa de inseminação artificial. Daniel e Martha se submeteram ao ciclo de reprodução assistida, culminando na concepção de um embrião. Martha foi a “barriga de aluguel”. Este embrião deu origem a Letícia. Martha, mãe de substituição, por meio de escritura pública, renunciou ao seu poder familiar em relação ao nascituro. Daí, Daniel e João ajuizaram a ação postulando que ambos fossem declarados pais da criança recémnascida. Eles pediram que fossem reconhecidos como pai biológico (Daniel) e pai socioafetivo (João) de Letícia, mantendo em branco os campos relativos aos dados da genitora, pois a concepção ocorreu mediante inseminação artificial heteróloga e a gestação por substituição.
MP foi contrário ao pedido
O Ministério Público se opôs ao pedido alegando a seguinte tese: A mãe está renunciando ao poder familiar e o tio da criança (João) está pretendendo adotá-la. Logo, o que temos aqui é um pedido de adoção unilateral que está sendo feito sem a observância das normas legais.
Essa argumentação do MP foi acolhida pelo STJ?
NÃO. Não há que se falar em adoção neste caso. Relembre o conceito de adoção trazido pelo Código Civil: Relembre-se o enunciado normativo do art. 1.626 do Código Civil:
Art. 1.626. A adoção atribui a situação de filho ao adotado, desligando-o de qualquer vínculo com os pais e parentes consangüíneos, salvo quanto aos impedimentos para o casamento.
No caso, não se pretendeu, de forma alguma, via decisão judicial, em processo solene, a destituição de um poder familiar antigo e a instituição de um novo poder familiar. Não se quis apagar completamente a relação familiar anterior e fazer nascer uma nova relação familiar, irretratável e irrevogável. Pelo contrário, buscou-se o reconhecimento da filiação socioafetiva do companheiro do pai biológico. Com isso, não se quis o fim de uma relação paterno-filial anterior, mas a declaração da dupla paternidade da criança pelo casal homoafetivo. A pretensão, portanto, era de inclusão de dupla paternidade em assento de nascimento de filho havido por técnicas de reprodução assistida, e não destituição de um poder familiar reconhecido pelo pai biológico.
Na I Jornada de Direito Civil do CJF, a questão foi debatida, conforme enunciado nº 111, destacando-se que o instituto da adoção e da reprodução assistida heteróloga atribuem a condição de filho ao adotado e à criança resultante de técnica conceptiva.
Na oportunidade, foi feita uma diferenciação no sentido de que, enquanto na adoção haverá o desligamento dos vínculos, na reprodução assistida heteróloga sequer será estabelecido o vínculo de parentesco entre a criança e o doador do material fecundante, no caso dos autos da genitora da menor:
Enunciado 111 da I Jornada de Direito Civil:
A adoção e a reprodução assistida heteróloga atribuem a condição de filho ao adotado e à criança resultante de técnica conceptiva heteróloga; porém, enquanto na adoção haverá o desligamento dos vínculos entre o adotado e seus parentes consanguíneos, na reprodução assistida heteróloga sequer será estabelecido o vínculo de parentesco entre a criança e o doador do material fecundante.
Desse modo, deve ser estabelecida uma distinção entre os efeitos jurídicos da adoção e da reprodução assistida heteróloga, pois, enquanto na primeira há o desligamento dos vínculos de parentesco, na segunda sequer há esse vinculo. Assim, no caso concreto, a mãe biológica, irmã de um dos autores, não possui vínculo de parentesco com a criança, filha do pai biológico e filha socioafetiva do seu companheiro. Portanto, não merece acolhida a tese sustentada pelo Ministério Público Estadual, pois, em não havendo vínculo de parentesco com a genitora, há tão somente a paternidade biológica da criança, registrada em seus assentos cartorários, e a pretensão declaratória da paternidade socioafetiva pelo companheiro. O conceito legal de parentesco e filiação tem sido objeto de grandes transformações diante da nova realidade fática, em especial, das técnicas de reprodução assistida e da parentalidade socioafetiva, impondo, assim, ao intérprete da lei uma nova leitura do preceito legal contido no art. 1.593 do CC:
Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem.
Vale ressaltar também que o STF já admitiu a possibilidade de existir dupla paternidade: "A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios". STF. Plenário. RE 898060/SC, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 21 e 22/09/2016 (Info 840).
Em suma:
É possível a inclusão de dupla paternidade em assento de nascimento de criança concebida mediante as técnicas de reprodução assistida heteróloga e com gestação por substituição, não configurando violação ao instituto da adoção unilateral. STJ. 3ª Turma. REsp 1.608.005-SC, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 14/05/2019 (Info 649).
FONTE: Dizer o Direito, escrito por Márcio André Lopes Cavalcante (Informativo 649 do STJ - versão completa ou versão resumida).