Informativo 946 - STF - São constitucionais os dispositivos do ECA que proíbem o recolhimento compulsório de crianças e adolescentes, mesmo que estejam perambulando nas ruas
terça-feira, 17 de setembro de 2019, 10h40
São constitucionais o art. 16, I, o art. 105, o art. 122, II e III, o art. 136, I, o art. 138 e o art. 230 do ECA.
Tais dispositivos estão de acordo com o art. 5º, caput e incisos XXXV, LIV, LXI e com o art. 227 da CF/88.
Além disso, são compatíveis com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), a Convenção sobre os Direitos da Criança, as Regras de Pequim para a Administração da Justiça de Menores e a Convenção Americana de Direitos Humanos.
STF. Plenário. ADI 3446/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 7 e 8/8/2019 (Info 946)
A situação concreta foi a seguinte:
O Partido Social Liberal (PSL) ajuizou ADI no STF contra os arts. 16, I; 105; 122, II e III; 136, I; 138; e 230 do ECA.
O pedido do autor era para que fosse feita uma interpretação conforme desses artigos e que o STF declarasse que é possível a apreensão de crianças e adolescentes para averiguação, ou por motivo de perambulação, desde que determinada por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária.
Em outras palavras, o partido queria que o STF dissesse que o juiz pode autorizar que os agentes de segurança façam a apreensão de crianças e adolescentes que estejam perambulando nas ruas.
Veja os dispositivos do ECA que foram objeto da ADI:
Art. 16. O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos:
I - ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais;
Art. 105. Ao ato infracional praticado por criança corresponderão as medidas previstas no art. 101.
Art. 122. A medida de internação só poderá ser aplicada quando:
(...)
II - por reiteração no cometimento de outras infrações graves;
III - por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta.
Art. 136. São atribuições do Conselho Tutelar:
I - atender as crianças e adolescentes nas hipóteses previstas nos arts. 98 e 105, aplicando as medidas previstas no art. 101, I a VII;
Art. 138. Aplica-se ao Conselho Tutelar a regra de competência constante do art. 147.
Art. 230. Privar a criança ou o adolescente de sua liberdade, procedendo à sua apreensão sem estar em flagrante de ato infracional ou inexistindo ordem escrita da autoridade judiciária competente:
Pena - detenção de seis meses a dois anos.
Parágrafo único. Incide na mesma pena aquele que procede à apreensão sem observância das formalidades legais.
O STF acolheu o pedido do autor?
NÃO. O STF julgou improcedente o pedido formulado na ação, ou seja, não aceitou dar a interpretação que era requerida pelo partido político.
Constituição Federal veda a interpretação pretendida pelo autor da ADI
As normas impugnadas estão de acordo e devem ser analisadas à luz do que preveem os arts. 5º, caput e incisos XXXV, LIV, LXI, e 227 da CF/88:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; (...)
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; (...)
LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Convenções internacionais
Além disso, essas normas do ECA possuem íntima ligação com regras
• da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH);
• da Convenção sobre os Direitos da Criança;
• das Regras de Pequim para a Administração da Justiça de Menores e
• da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Liberdade de locomoção e doutrina da proteção integral
O art. 16, I, do ECA consagra a liberdade de locomoção da criança e do adolescente, “ressalvadas as restrições legais”, e está de acordo com a doutrina da proteção integral positivada no art. 227 da CF/88, que assegura o direito à dignidade, ao respeito e à liberdade das pessoas em desenvolvimento, proibindo toda e qualquer forma de negligência, discriminação, violência, crueldade e opressão.
Dessa forma, não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade no direito de liberdade – de ir e vir – previsto no art. 16, I, da Lei nº 8.069/90.
Vale ressaltar, inclusive, que esse direito de ir e vir constitui cláusula pétrea, nos termos do art. 60, § 4º, IV, da CF/88, e não pode nem sequer ser suprimido ou indevidamente restringido mediante proposta de emenda constitucional.
Ademais, conforme já dito, o art. 16, I, do ECA está também em consonância com vários diplomas internacionais, dentre eles:
• o direito à liberdade e a proibição à discriminação, previstos nos arts. 1º e 2º da DUDH;
• a proibição contra interferências ilegítimas e arbitrárias na vida particular das crianças, prevista no art. 16 da Convenção sobre Menores da ONU;
• a norma de proteção integral estabelecida no art. 19 da Convenção Americana de Direitos Humanos; e
• as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores.
Ao contrário do que defendido pelos autores da ação, a exclusão do art. 16, I, do ECA do ordenamento jurídico poderia acarretar violações aos direitos humanos e fundamentais das crianças e dos adolescentes, agravando a situação de extrema privação de direitos a que já são submetidos, em especial para aqueles que vivem em condição de rua.
Não se deve retomar a “doutrina menorista”
As privações sofridas e a condição de rua desses menores não podem ser corrigidas com novas restrições a direitos e o restabelecimento da doutrina menorista que encarava essas pessoas enquanto meros objetos da intervenção estatal.
Liberdade das crianças e adolescentes não é absoluta
É certo que a liberdade das crianças e adolescentes não é absoluta, admitindo restrições legalmente estabelecidas e compatíveis com suas condições de pessoas em desenvolvimento, conforme a parte final do art. 16, I, do ECA.
Nesse sentido, a capacidade de exercício de direitos pode ser limitada, em razão da imaturidade.
No entanto, o pedido formulado na ação buscava eliminar completamente o direito de liberdade dos menores, o núcleo essencial, indo além dos limites imanentes ou “limites dos limites” desse direito fundamental, restabelecendo a já extinta “prisão para averiguações”, que viola a norma do art. 5º, LXI, da CF/88.
Não declaração de inconstitucionalidade do crime do art. 230 do ECA
Também foi rejeitado o pedido para declaração de inconstitucionalidade do art. 230 do ECA. Segundo o STF, isso representaria verdadeiro cheque em branco para que detenções arbitrárias, restrições indevidas à liberdade dos menores e violências de todo tipo pudessem ser livremente praticadas, o que não pode ser admitido.
Aliás, o crime em questão é sancionado com pena de detenção de seis meses a dois anos, tratando-se, dessa forma, de infração penal de menor potencial ofensivo. Portanto, o tipo penal se aproxima mais da proibição de proteção deficiente que da inconstitucionalidade por excesso de criminalização.
Ademais, a existência da referida norma não impede a apreensão em flagrante de menores pela prática de atos análogos a crimes.
Constitucionalidade dos arts. 105, 136 e 138 do ECA
Afastou-se também a alegada inconstitucionalidade dos arts. 105, 136 e 138 do ECA.
Tais dispositivos preveem que a criança que pratica ato infracional não recebe medida socioeducativa, mas apenas medidas protetivas.
O tratamento adequado para a criança infratora é um desafio para a sociedade.
A decisão do legislador de não aplicar medidas mais severas para a criança infratora está em harmonia com a percepção de que a criança é um ser em desenvolvimento que precisa, acima de tudo, de proteção e educação, ou seja, trata-se de uma distinção compatível com a condição de maior vulnerabilidade e de pessoa em desenvolvimento, quando comparada a adolescentes e pessoas adultas.
O legislador dispõe de considerável margem de discricionariedade para definir o tratamento adequado à criança em situação de risco criada por seu próprio comportamento.
A opção pela exclusividade das medidas protetivas não é desproporcional; ao contrário, alinha-se com as normas constitucionais e internacionais.
A atuação do conselho tutelar nesses casos de atos infracionais praticados por crianças não representa qualquer ofensa à Constituição nem viola a garantia da inafastabilidade da jurisdição. Nesse sentido, cumpre ressaltar que o conselho tutelar é um colegiado de leigos, assim como o tribunal do júri, previsto no inciso XXXVIII do art. 5º da CF/88. Trata-se de órgão que permite a participação direta da sociedade na implementação das políticas públicas definidas no art. 227 da CF/88, voltadas para a promoção e proteção da infância, em consonância com as mais atuais teorias de justiça, democracia e participação popular direta.
A atuação do conselho tutelar não exclui a apreciação de eventuais demandas ou lides pelo Poder Judiciário, inexistindo, portanto, a alegada ofensa ao art. 5º, XXXV, da CF/88.
Constitucionalidade do art. 122, II e III, do ECA
O autor afirmava que o legislador violou a proporcionalidade ao prever no art. 122, II e III, do ECA, hipóteses muito restritas de internação.
O STF afastou a apontada inconstitucionalidade.
O espaço de conformação do legislador é amplo. Existe, assim, uma margem larga de discricionariedade conferida ao legislador para estabelecer as medidas aplicáveis ao adolescente infrator.
As infrações violentas podem, desde logo, corresponder à internação (inciso I). O objetivo de prevenção é especialmente resguardado nos casos em que a integridade física das vítimas é posta em risco. Fora isso, a lei evita ao máximo conferir ao magistrado o poder de aplicar a internação.
Tem-se ,aí, uma opção perfeitamente proporcional do legislador, em razão do caráter estigmatizante e traumatizante da internação de uma pessoa em desenvolvimento. Isso sem falar da precária situação das entidades de acolhida.
A referida opção legislativa encontra-se de acordo com as normas constitucionais e internacionais que impõem a utilização das medidas de internação como último recurso, privilegiando os princípios da excepcionalidade, brevidade e proporcionalidade das medidas restritivas da liberdade.
Em suma:
São constitucionais o art. 16, I, o art. 105, o art. 122, II e III, o art. 136, I, o art. 138 e o art. 230 do ECA. Tais dispositivos estão de acordo com o art. 5º, caput e incisos XXXV, LIV, LXI e com o art. 227 da CF/88. Além disso, são compatíveis com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), a Convenção sobre os Direitos da Criança, as Regras de Pequim para a Administração da Justiça de Menores e a Convenção Americana de Direitos Humanos.
STF. Plenário. ADI 3446/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 7 e 8/8/2019 (Info 946).
FONTE: Dizer o Direito, escrito por Márcio André Lopes Cavalcante (Informativo 946 do STF - versão completa ou versão resumida).